A praga

 

Gandariz, pequena aldeia deste nosso Portugal, um coreto maneirinho onde poucos músicos interpretavam em compasso lento a marcha da vida de um quotidiano simples e humilde. A freguesia não era grande em montes e vales e em pouco mais de uma manhã era corrida de lés a lés, desde a encosta da serra da Guieira até ao vale por onde serpenteava pachorrenta a ribeira do Lobo. Também não era grande o número das almas que nela penavam, porque aos poucos os mais novos rumaram à Suíça ou mesmo a França e a Espanha. Mesmo assim, ainda havia gente para, lá por Agosto, inundar o arraial da festa de Nossa Senhora da Guia, mesmo que os vizinhos das aldeias de Germondim, Lourães e Vidigosa ajudassem a compor o ramalhete, para além de que as férias permitiam que alguns filhos da terra viessem à mesa farta da festividade como que no encalço de um aroma de carne assada aconchegada na assadeira em cama de batatas às metades e ramos de tomilho e louro.

A aldeia era assim uma espécie de presépio napolitano montado na encosta mais risonha da Guieira, onde cada habitante desempenhava o seu papel e ocupava o seu lugar, fosse no campo, no amanho da terra ao ritmo das sementeiras e colheitas, fosse no monte pejado de pinheiro bravo com salpicos de carvalhos e castanheiros.
Vivia Gandariz na sua paz molengona, sem grandes larguezas de meios, é certo, mas sem desmazelos ou sobressaltos

Sobressaltou-se, porém, quando o Adriano Azevedo, com 20 anos e picos de Suíça decidiu regressar de vez. Pegou nas filhas, na Rosa, no be-éme, e depressa reentrou na “maison”, que erguera à custa de francos no melhor sítio do souto que tinha ao cimo do lugar do Riengo.
Nunca o disse a ninguém, que era de poucas palavras, mas quem o julgava conhecer melhor dizia que vinha bem calçado e que tinha a juros na agência bancária de Lourães uma pipa de massa; Cinquenta mil contos, alvitravam os mais modestos. - Mais do que isso! P´ra cima de cem mil contos! Arriscavam os mais informados, alguns dos quais que com ele se cruzavam aos fins-de-semana pelas ruas ou parques de La Chaux-de-Fonds, Neuchatel , Sernéres ou Colombier.
Alguns, como o Zé de Falgar, seu companheiro da primária e amigo das farras de solteiro, dizia que sim senhor, que tinha muito dinheiro porque o soubera ganhar com trabalho e esperteza. Outros mais maldizentes, como o Zeferino da Micas, que não o podia ver desde que num bailarico de S. Martinho, dos seus braços lhe arrancara para sempre  a Rosa para uma dança mais íntima na sombra espessa da carvalha velha, deixando-o plantado no meio da eira com cara de lorpa, dizia que talvez tivesse umas massas mas à custa de sacrifício desmedido, trabalhando sábados, domingos e feriados  e a tirá-lo ao corpo e à boca das filhotas, fazendo refeições à base de caldo aquecido, atum e sardinhas enlatadas, esgueirando-se a Portugal em fugidas de longe a longe. Vê-lo pela Casa Portuguesa ou noutros convívios dos patrícios era uma lotaria.

Fosse como fosse, depressa o Adriano estava granjeado como um dos mais ricos e importantes senhores de Gandariz e, verdade se diga, embora sem fazer disso alarde, tinha-se nessa boa conta. Vestia-se bem, tinha bons carros, casas de férias na beira-mar  e a Rosa, que já não sendo a mesma de há trinta anos atrás, andava sempre nos trinques, viçosa como um ramo de flores em jarra a que nunca faltava água fresca.

Talvez por isso, foi sem surpresa que passadas poucas semanas de ter sido dado como vindo de vez da Suiça, o Adriano soube pela mulher, que no final da missa tinha sido alumiado como Juiz da Festa do Senhor. Coisa de pouca monta mas de reconhecimento.
O Adriano rogou uma praga silenciosa ao saber da novidade, mas a contragosto lá assumiu o papel que a pouco mais se resumiu do que ter perdido uma manhã de Domingo a bater a cada porta da aldeia, a pedir quase por favor a esmola da tradição, e depois no dia da missa solene estar ao lado do padre indumentado com uma larga opa escarlate, que pelo menos lhe disfarçava o rubor do incómodo do papel.
Jurou que nunca mais. Que não precisava daquilo para nada, andar a pedir e a ouvir sermões do lado de dentro das portas fronhas ou a aventurar-se em quinteiros húmidos, recebido por cães a latir espuma pelas bentas para, afinal, receber uns míseros trocados para depois o lorpa do Saraiva da Comissão da Fábrica o arrebanhar no saco de veludo púrpura.

Ninguém, para além da Rosa e das filhotas lhe ouviu o praguejar pelo que passados dois meses estava a ser eleito para juiz da festa da Senhora da Guia. A Rosa ainda o tentou convencer de que era um papel de prestígio, que qualquer gandarizense se orgulharia, mas a verdade é que poucos dias depois da nomeação, não teve outro remédio senão ir ter com o padre Albano, pesarosa a desfiar um rosário de desculpas, que o marido pela altura da festa contava voltar à Suiça para resolver assuntos que ficaram pendentes e que, apesar de desgostoso, seria melhor arranjar substituto. Que talvez para o ano seguinte ou lá mais para a frente. Que mais a mais, ainda tinha feito a festa do Senhor há pouco tempo e que não poderiam ser sempre os mesmos.
O padre Albano, bonacheirão, enrodilhado nesta ladainha e nos olhos faiscantes da Rosa, pareceu compreender as desculpas e não querendo ver desviada tão importante ovelha do seu rebanho e pensando em juros futuros, anuiu e prometeu arranjar substituto. Que não fosse por isso.

A freguesia soube desta recusa e pareceu acolher compreensiva a justificação do Sr. Adriano, mas outros nem por isso, como o Zeferino que aproveitou as conversas na tasca do Elias para elevar tão baixa afronta. – É um merdas! Um cheio-de-nove-horas! Chega aqui armado em rico, cheio de pastel e não é capaz de assumir uma eleição que só lhe daria prestígio. Bem feito para quem o nomeou, pois fiaram-se na sua importância e agora tiveram que arranjar um cireneu qualquer.


Influência negativa do Zeferino ou não, e em pouco tempo percebeu-se que havia vários zeferinos na aldeia, o Adriano começou a ser mal visto  e, verdade se diga, também fez por isso pois era alma que não tinha horas para as missas nem convivia com a malta e minutos passados nas tascas eram escassos, quase sempre jogando às copas em que raramente mostrava bom ganhar ou melhor perder, deixando assim um clima de antipatia e mesmo um rancor que aos poucos, num lento germinar, foi alastrando por Gandariz.

Nunca mais foi eleito ou nomeado para nada, mesmo que por diversas vezes ainda tivesse sido sondado, nomeadamente para Mordomo-da-Cera, que lhe daria a responsabilidade de Juiz da Cruz. – Que nem pensassem nisso! Lá mandava o recado pela Rosa. Por diversas vezes foi abordado para encabeçar a lista às autárquicas ou à presidência do Desportivo Gandarizense. A todos respondeu com indiferença e para qualquer coisa ou função que fosse apontado, a aldeia habituou-se  à resposta negativa da boca do Adriano ou em recado pela Rosa.
Não tardou assim que o Adriano Azevedo caísse num certo desprezo geral e qualquer sorriso ou deferência que recolhia era em situação de negócios porque o dinheiro não distinguia amizades ou simpatias, como dizia o Albano, empreiteiro que lhe ampliou a “maison” e vedou a quinta.

O Adriano, neste azedume constante, no alto da sua importância incompatível com questões menores, fazia por não se relacionar com a aldeia e esta, já habituada, continuou a ruminar na sua pacatez, ignorando que alguma vez ali existisse um Adriano, o qual, pelo Zeferino, foi baptizado de Adriano Azedo, num trocadilho irónico ao apelido e travo ácido da sua cagança.

A verdade é que ao fim de alguns anos, rompida a capa da altivez, a par dos cabelos grisalhos e do amolecimento por alguns problemas de saúde, incluindo um enfarte de que escapou mas que o deslavou de cores, o Adriano, aos poucos, começou a chegar-se à aldeia como galinha ao poleiro pelo lusco-fusco, a marcar presença na tasca, a aparecer na missa, a marcar lugar nos passeios da paróquia, mas nunca mais foi a mesma coisa e tanto para o Zeferino como para os habitantes da aldeia, ele continuou a ser o Adriano Azedo, um “burro carregado de libras”, um “grosseirão” que não levantava uma palheira do chão a favor da freguesia.

Se por parte do Zeferino, se compreendiam os seus constantes remoques, os seus velhos ódios, ancorados na desfaçatez do primeiro amor roubado, já quanto à aldeia não era mais do que um julgamento salomónico de quem sempre encarou as coisas com naturalidade, distinguindo de forma frontal a pertinência de se matar o bicho para morrer a peçonha. Não seria, pois, com estes paninhos quentes e tardios, esta amostra de arrependimento com “água no bico” que tornariam o Adriano no senhor importante e considerado, quando anos antes regressara de vez da Suiça.

O Adriano, à custa de tantos nãos e de tanto azedume semeado e colhido, tornou-se num homem sozinho e nem as próprias filhotas, que fugiram do peso do seu jugo logo que se viram formadas e arrumadas com doutores lá para os lados do Porto, faziam por o sentir acarinhado. A Rosa, essa, pelo respeito ou medo de tantos anos de subjugação com rédea curta, mas agora mais por compaixão samaritana, era a sua única companhia.

Divagava dias inteiros, sozinho pelas encostas do Souto Grande, onde lhe assaltava à memória os alegres tempos de rapaz pegado à soga da parelha de bois de seu pai e a desforra nos bailaricos como um quebra e rouba corações, e agora perguntava a si próprio, porque é que chegado ali sentia-se a mais triste das criaturas de Gandariz? De que lhe servia os milhares que toda a aldeia, com razão, pensava que tinha, quando já as filhas o evitavam e mesmo o Zé do Falgar, seu companheiro e velho amigo das farras, lhe voltava as costas com indiferença, recusando um copo de maduro a transbordar oferecido ao balcão da tasca? Quando já ninguém o aceitava à roda de uma mesa para jogar as copas, a sueca ou o dominó?

Mergulhado nesta amargura, neste turbilhão de lembranças e memórias de outros tempos, numa interrogação doentia dos quês e porquês, num julgamento constante do ter e haver, o Adriano continuou a caminhar já sem rumo pelo caminho estreito da encosta abrupta da Guieira, e os pratos da balança da sua consciência oscilavam num frenético sobe e desce que lhe confundia as ideias, a alma e o coração e todo o corpo num frémito de lágrimas jorradas gordas e quentes. Neste torpor e arrebatamento que o dilaceravam, e já a coberto da negrura gélida da tarde que caía apressada como todas as tardes de Novembro, o Adriano descia a encosta, tropeço, não vendo já onde punha o pé que resvalava no musgo húmido. Quando a Rosa, aflita a altas horas da noite por ele não ter aparecido nem respondido ao telemóvel, bem tentou pôr a aldeia em alvoroço à sua procura, mas esta continuou no aconchego da lareira ou do morno da cama numa indiferença de doer. Apenas com as buscas organizadas da autoridade, dos bombeiros e da Guarda, passados dois dias, já pálido e inflamado de morte, com os olhos abertos vidrados de pavor, foi encontrado afogado, num leito de lodo frio da presa da mina do Salgueiral.


Cumpria-se assim o seu destino ou mesmo a praga do Zeferino rogada naquela distante noite de S. Martinho, e que tantas vezes repetiu: - Hás-de morrer rico mas como um cão abandonado!

 


Américo Almeida

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