O Hipólito

 

O Hipólito, Silva de sua mãe e Cabral de seu pai, é uma das figuras mais típicas da freguesia de Garranchos. Desde pequenito que dava para ver que naquela bola de gente havia uma mistura de força, garra e ruindade, mas também de muita alegria. Ainda na escola, onde se arrastou pesadamente de ano em ano, da qual se libertou, já marmanjo, de uma quarta classe paga a galos caseiros, ele era um poço de problemas, mas daqueles poços sem fundo e mesmo que mal soubesse contar os dedos de uma mão, era com ela fechada, ao murro, ou aberta, à lapada, que punha a tropa da turma em sentido. Mas fazia-o sempre com um misto de alegria e brincadeira que os laparotos dos colegas, quando sentiam o peso dessa mão rechonchuda, nem sabiam se deviam chorar se rir. Apesar desse mau feito, o Polito, como era chamado, sabia também ser generoso e não raras vezes dividia pelos colegas a pobreza da côdea de pão que a mãe lhe enfiava no bolso cardido à hora de rumar à escola do Outeiro.

Diplomado com a quarta classe, no mesmo dia em que à noite os examinadores se deliciavam com uma canja fumegante de galo de pescoço esfolado, o Hipólito já tinha a guia de marcha para no dia seguinte apresentar-se como moço ao tio Fernando, trolha de arte e profissão. Assim, desde os primeiros dias de uma dureza extrema, a traçar massa e a acartar a pedra de afiar a colher, a guindar pesados baldes à força de braços, com as mãos endurecidas e gretadas pelo cimento, o pobre Hipólito penou durante cinco longos anos ao lado do tio para no final de cada quinzena apresentar à pobre mãe pouco mais que duas notas de cem.

Logo feitos os dezoito anos, que festejou com os amigos na tasca do Azevedo, numa súcia de queijo e amendoins, regada com uma receita generosa e açucarada, ainda mal curada a carraspana, o Hipólito afrontou a mãe e o tio, decidido a lançar-se por conta própria na arte que aprendera. Jurara, porém, que os baldes da massa seriam outros a servi-lo. Dito e feito, e em pouco tempo o Hipólito  tinha já há sua conta quatro gandulas a quem a quarta classe tardara. Não lhe faltava trabalho, tanto em Garranchos como nas redondezas e desde que fosse para chapar massa, assentar telhas ou caiar, o mestre Cabral, como gostava que o tratassem, era garantia de serviço sério e bem feito. Fazia questão que assim fosse e as massas que lançasse à parede ou metesse numas sapatas ou num muro em ciclópico, tinham que respeitar as doses certas, fosse de dois de areia e um de cimento, ou dois de areia, um de saibro e um de cimento. Não poupava o cimento nem que ficasse com prejuízo. Nem usava varas de eucalipto verde a fazer de verguinhas como se dizia do concorrente Dino da Amélia.

Neste corridinho, o mestre Cabral foi dançando ligeiro e, alargada a equipa, em breve já se multiplicava  nas empreitadas. Depressa cresceu, na profissão e no respeito da clientela, porque quanto a corpo, verdade se diga, o aumento foi mais na largura e, pela idade da tropa, da qual se safou pelos conhecimentos do Zé Sem Perna, um prestigiado livrador da vizinha freguesia de Justes, o qual, por uma granada que o devolveu ao Hospital Militar, depressa, à custa de prendas a todo o pessoal médico, enfermeiro e administrativo, acumulou influências capazes de livrar o mais saudável e robusto rapazola apresentado na inspecção, o Hipólito pesava já uns noventa quilos, bem aquilatados na balança onde pelo Entrudo confirmava o palpite lançado às arrobas dos porcos caseiros.

O Hipólito, o mestre Cabral, rechonchudo como um lapão, com a sua cara alegre de faces encarnadas, retocado por um bigodinho à Clark Gable, lá conseguiu miscar na Odete, uma moçoila prazenteira, rodinha vinte-e-seis, talhada à sua medida, arrancando-a à ninhada de treze irmãos da família dos Laranjeiras. O Padre João, depois de ninguém levantar objecções na plateia convidada que compunha a igreja, lá os uniu em nome de Deus. Já lá vão trinta anos, pois que as Bodas de Prata fizeram-se há cinco, no dia 8 de Agosto, logo a seguir à festa da Senhora do Amparo. Para mal dos seus pecados, mesmo tendo sido sempre um casal exemplar, daqueles que o Padre João gostava de acolher debaixo da sua asa de galinha choca, no seu grupo de Casais de Santa Ana e S. Joaquim, a verdade é que nunca tiveram filhos e assim a sua vida nunca chegou a netos.

O Hipólito, entretanto há muito afastado das lides de mestre, por entender que não valia a pena trabalhar para filhos que a Odete não lhe deu - abomina pensar que os não soube ou não pôde fazer - o Hipólito vive agora num misto de alegria ou tristeza mal disfarçada e vai-se entretendo com a patroa a cultivar umas leiras que rematou na partilha à custa de tornas. Está já na reforma. Continua com a mesma baixa altura, que os sacos de cinquenta quilos de cimento ajudaram a achatar em tempos de moço, ainda rechonchudo mas já de pele menos rosada e com as rugas sulcadas pelo tempo e pelas agruras da vida. As mãos ainda cheiram a cimento e à enxada, passa o tempo a cuspi-las. Mas, honra lhe seja feita, é um alegre ruinzito e sempre que entre na tasca, o seu velho bigodito, agora já caiado, ainda arrebita com o sorriso e se com ele alguém discute ou o contraria no seu doentio benfiquismo, temos homem para velhas lutas, daquelas que em novo reboliçava a tasca do Azevedo.

Mas, já não é a mesma coisa: Tem a garra e a ruindade do tempo da primária, tem viva lembrança das lapadas com que acariciava as ventas largas do Mandruca, que apesar do cabedal ficava com elas todas, mas já lhe falta as forças e principalmente a verdadeira alegria, aquele que se tem quando se é novo. Tomada a cevada, regressa, pois, a casa, cabisbaixo como um cão com o rabo entre as pernas, escorraçado por uma criança, e nem mesmo a frescura verde das alfaces dos seus talhões na horta o consegue vicejar. O Hipólito, vai assim vivendo os seus dias de reforma, envelhecendo, é certo como todos os outros, mas numa passada melancólica que nem uns copitos a mais conseguem afogar, sempre que na numerosa família, em dia dela, é bombo da festa.

O Hipólito Cabral, está mais velho e menos alegre, ou menos novo e mais triste, mas, que raio, ainda continua a ser uma figura típica de Garranchos e, com uma ponta de orgulho ele tem-se nessa conta e é por isso que de volta e meia, numa espécie de descargo, lá consegue arrancar forças à sua velha ruindade e esteja onde estiver, a jogar uma suecada, a discutir futebol ou política, é homem e mestre para armar uma valente confusão e no dia seguinte Garranchos inteira fica a saber que o Hipólito ainda continua vivo, para dar e para durar.

 


Américo Almeida

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