A bola de riscas coloridas

A freguesia de Guisande estava em festa. O sino grande salpicava de notas repicadas e alegres o ar límpido de Junho, tal qual o padre a distribuir bênçãos quando aspergia a assembleia com a água nova benzida na missa pascal. Era festa. Era dia de Corpo de Deus, de Comunhão Solene para uma trintena e e tal de criançolas que o padre Francisco, com dedicação de pastor e disciplina de mestre, arrebanhara de Estôse ao Reguengo, e preparara em ensaios rígidos, marcados por doses de mocas, cristãmente distribuídas. Na véspera, a freguesia, organizada por lugares, juncara já de mastros, bandeiras e flores, o percurso da Igreja à capela do Viso, por onde, compassada pela Banda do Vale, haveria de passar a majestosa procissão, qual centopeia trajada de opas escarlates arrastando-se lenta e sagradamente pelas Quintães fora.
  Para cada uma das crianças seria um dia inesquecível, uma marca estampada fundo nas suas tenras vidas, não tanto pelo significado religioso, que aprenderam de cór na doutrina e que daí a dias certamente esqueceriam, mas sobretudo pelo êxtase e turbilhão de emoções que o dia comportava, desde os preparativos logo pela manhã bem cedo, a roupita diferente da habitual, os pés descalços enfiados numas botinas, até ao comer melhorado e com alguma fartura, mas, também, pelo brinquedo que, quase por decreto, era como uma recompensa divina pelos deveres cumpridos, desde a lenga-lenga da doutrina aprendida à Ti´Francelina, até aos ensaios do protocolo da cerimónia e à iniciação no coral pautada pelas mocas do padre Francisco, sempre que a voz teimava em aldrabar um sustenido ou trocar um semibreve por uma colcheia “…Corpo de Cristo, Sangue Divino, dá a vida eterna ao peregrino…”
  O Albertino era uma dessas crianças, e, logo arrumadas as cerimónias, às últimas notas do “vamos partir, de junto deste altar…” a sua mão pequenita, ainda cheirosa da açucena que deixou apressado aos pés da Senhora da Conceição, recebeu da mãe uma luzidia moeda de 25 tostões que, na tenda de brinquedos depressa trocou por uma bola de borracha, pintada às riscas, verdes, azuis e amarelas. Era bonita, não muito grande, que o dinheiro não deu para tamanho mais generoso, mas, mesmo assim, um pouco maior que um diospiro.
Nos dias seguintes, a bola às riscas coloridas encheu o Albertino de alegria, numa inundação que chegou ao coração e mesmo à alma. Encheu também todo o seu tempo, afogando os deveres e afazeres marcados pela disciplina severa de sua mãe, pelo que, depressa, também se encheu de porrada, e a bola, como quem separa a cria indefesa da mãe impotente, foi-lhe arrancada e escondida. Bem escondida.   
Nos tempos seguintes, nos escassos momentos de vagar entre os trabalhos da escola e da casa, o Albertino parecia uma alma penada, divagando soturno pelos cantos da casa e da horta, à procura da sua bola às riscas coloridas. Procurou, procurou, abriu caixas e gavetas, deslocou o roupeiro e a cristaleira, revolveu pedras e cavou buracos, mas nada. Chegou a acreditar que a mãe a lançara ao fogo do forno grande numa das quartas-feiras de fornada. A inglória na procura e o passar do tempo fizeram o resto. Chegou a festa do Viso, veio o mês das almas, o Natal e Páscoa, os meses e os anos. Esqueceu a bola, embora, vagamente em sonhos, ainda pinchasse colorida à sua frente.
O Albertino cresceu, tornou-se rapaz, fez-se homem, fez a tropa, fez o seu ninho noutra árvore, casou e teve filhos. Pelo meio, foram-se-lhe os pais, e com a mãe o segredo do esconderijo.  
  A velha casa paterna, de cantaria escurecida pelo tempo, outrora povoada pelos pais, irmãos, avós e bisavós, resgatou-a aos casmurros dos irmãos por tornas em dinheiro, e agora, em tardes soalheiras, enquanto o sol entrava molengão pelos janelas do sobrado, o Albertino, a caminho dos sessenta, abria emocionado o velho portão do quinteiro e ficava sem saber se aquele ranger era das dobradiças enferrujadas ou se das portas da sua alma, que também se abriam escancaradas a um manancial de recordações, que os antepassados sisudos, cinzentos e formais, pendurados em quadros abandonados pelo vazio da sala grande, ajudavam a reviver. Numa dessas tardes, subiu à cozinha grande, e lá estava o forno, que ainda parecia quente, a lareira e o negro poial ainda a cheirar a fumo. Desceu aos aidos húmidos e escuros, viu a casa-da-eira, e entrou na casa-do-vinho. Lá estavam o lagar de xisto, a prensa e os pipos, alguns sem aros e aduelas, como monstros do passado, esventrados no corpo e na alma. 
Lá estava, ainda, a velha salgadeira de madeira de pinho, jazigo calcinado pelo salitre de muitas arrobas de presuntos e orelheiras ali enterradas a cada matança. Decidiu deslocá-la, para ver da sua estabilidade. Então, entre a parede e a salgadeira mexida, envolta num monte de reboco salitrado, lá estava a sua bola. Não queria acreditar. Tomou-a com as mãos trémulas, limpou-a do salitre que por cima lhe tinha comido a cor. Então, virou-a da parte pousada no chão, e de repente a bola lavou-se com as suas lágrimas e pôde voltar a ver um pouco das riscas verdes, azuis e amarelas. Derrotado pelo pranto e emoção, deixou-se sentar na borda da prensa e as suas mãos, agora de homem maduro, afagavam mansamente a sua bola de menino, e, lá para os lados de Trás-da-Igreja, pareceu-lhe ouvir o bater festivo e repicado do sino grande. Abriu a mão direita, sentiu um cheiro de açucenas e pareceu ver nela os 25 tostões de sua mãe.  
 

Américo Almeida






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