Morreu o ti´Jacinto

 

- O ti´ Jacinto morreu ! - Ainda o sino grande vibrava com as derradeiras notas das carreiras a defunto, e já a notícia se espalhara célere pela aldeia.
Tenho do ti´ Jacinto a imagem imponente de um dos velhos patriarcas que povoam o livro do Génesis, na Bíblia, daqueles que viveram duzentos, trezentos e quatrocentos anos e por aí fora, até Matusalém, que consta ter tido a maior longevidade com as suas novecentas e sessenta e nove primaveras.
Claro que o ti´Jacinto não chegou a tantos anos, nem aos cento e vinte que dizem ter vivido Moisés, nem sequer aos noventa e seis do tí´Joaquim da Ana, seu compadre, mas ficou por lá perto.


Viúvo, de uma vintena de anos, da Francelina, eterna e fiel companheira das tristezas e das alegrias, da saúde e da doença, o velho ti´Jacinto, sempre sacudido por uma tosse seca e purulenta e dores em tudo quanto era osso, arrastava-se curvado nos seus últimos dias pelas ruas do lugar, agarrado a uma nodosa bengala de castanheiro bravo, a mesma que anos antes descarregava a eito nos lombos matulões da sua rapaziada.


O tí´ Jacinto era lavrador. Agarrado à soga dos bois, recordo-o nas suas peregrinações diárias para as Ribeiras, donde, enfiado nuns tamancos e calças remendadas, entre plantações de batatas, milho, centeio, feijão e latadas de vinho americano, arrancava o escasso sustento com que conseguiu manter e criar a sua prole, mesmo considerando que a criação acabava por altura da quarta-classe, ou até da segunda e terceira, desde que a etapa rondasse os 10 ou 11 anos e a comunhão solene garantida. Depois era trabalho. Felizmente p´ro ti´ Jacinto, os matulões dos filhos não eram ainda obrigados a frequentar a escola até ao 9º ano, nem se pensava na faculdade, nem nos, carros, roupas de marcas, computadores, telemóveis e casamentos chiques em quintas decoradas com carroças e cangas de bois. Isso ainda pertencia ao futuro e o Ti´Jacinto viveu no passado.


Criou doze filhos, todos homens, tantos quantos as tribos fundadoras de Israel, como costumava dizer orgulhoso, criados e mantidos a caldo de couves e feijão, pouco, sem muado, e a muita porrada no lombo. Não que o ti´ Jacinto  fosse demasiado severo, ou desprovido de apego paternal, mas porque essa era a lei da vida, a lei da pobreza, a lei do pão-nosso-de-cada-dia, mitigado à terra, resgatado à inconstância do tempo e das estações, do nascer ao pôr-do-sol, com suor, sangue e lágrimas.
Não admira, pois, que a tribo, tal como as de Israel, atingida a independência e discernida a vontade instintiva de pássaro que voa da gaiola repressiva, se dispersasse cedo por terras de França e Suiça e ali fizesse ninho e fundasse a sua prole. Para trás, para todos eles, principalmente depois de sepultada a referência maternal, que reviam num ou noutro ano em dia da Festa do Viso, ficavam a terra e as recordações amargas de trabalho, fome e bordoada de criar bicho. Ficou também o ti´ Jacinto, abandonado à sua bengala de castanheiro bravo, amparado nas horas piores pelas almas piedosas de algumas samaritanas vizinhas e alimentado a horas certas pela assistência social, já quando não conseguia cozinhar p´ra si, nos derradeiros anos.


O ti´ Jacinto morreu. Se calhar de doença, se calhar de velhice. Mas morreu. No dia do funeral teve o Padrão das Almas, vindo da freguesia do Vale e Missa de corpo presente, porque deixara indicações e dinheiro para isso. O padre habitual, em dia de folga, foi substituído pelo velho Padre Elias, arrancado da tasca da Irene, a meio de uma punheta de bacalhau.
Os filhos, os doze, foram avisados, mas não lhes deu jeito. Que viriam para a Missa de Sétimo Dia, recolher o ofertório e para definir as partilhas do que restava do campo da porta e da tapada do Souto de Baixo. Assim, em cima da hora, que era difícil; os bilhetes, os aviões, as viagens, as férias já marcadas…
Sempre desejou ser sepultado num dia de sol, ser aconchegado pela terra morna. Arrepiava-o a expectativa de descer à terra em dia de chuva, e ser soterrado a pazadas de lama fria e pesada.


O destino satisfez-lhe essa última vontade. Quanto aos filhos, demasiado amargurado nos últimos anos, nunca tivera ilusões e pressentia que ia ser sepultado sozinho, abandonado como um cão sem dono, sem a sombra envolvente das asas dos filhos, sequer sem um beijo choroso na testa, ao fechar do caixão. Não pode comprovar essa amargura que lhe tolhia a alma, é certo, mas não se enganara. Dos doze que manteve e criou, todos ainda vivos e bem de vida, nem um só apareceu.
O caixão desceu aos solavancos os sete palmos e alojou-se pesado no fundo da cova aberta pelo Almiro. Os presentes começaram a abandonar o cemitério entre conversas de circunstância e quando sobre a madeira do esquife, lançada parcimoniosamente por um sobrinho dorido, caiu a primeira pá de terra, ainda morna pelo sol de Agosto, uma leve aragem sacudiu um renque de choupos na encosta da Quintão, e o único choro, quase um frémito, parece ter vindo dali, da natureza, afinal a única que compreendeu e acompanhou o ti´ Jacinto, na vida e na morte.


O Ti´ Jacinto morreu. E se o padre habitual, num dia que não era de folga, no elogio fúnebre à Micas da Calçada, dias antes, perante os filhos doutores e engenheiros, assegurava que ela já estaria no Céu, com o seu sorriso de santa (quando na verdade era a peçonha mais reles do lugar), é mais do que certo que ele, o Ti´ Jacinto, esse sim, estará já à sombra do Criador, porque o seu purgatório, a sua redenção, foram já cumpridos aqui na Terra.


Requiescat in pace !

 


Américo almeida

(conto publicado no jornal “O Mês de Guisande”, em Junho de 2006)

Sem comentários:

Enviar um comentário

O autor optou por moderar os comentários.