O vira-vento

 

Como de costume a mãe acordara bem cedo e, ainda estremunhado no morno da cama, recebera as ordens habituais: Que arrumasse a case e de pois da escola que fosse ter com ela à Ribeira de Baixo, nas Corujeiras, para a ajudar a trazer p´ra cima um manado de verdura p´ró gado. Que se não perdesse nas brincadeiras.


Mal ouviu bater a pesada porta do lado de fora do quinteiro, o Mingos revirou-se e envolveu-se melhor na grossa manta de lã, confortando-se na quase meia hora que lhe sobrava à molenguice.
Maio já ía a meio. Lá fora, num aroma de flores de laranjeira um sol fresco e límpido já inundava o mundo. Ainda se revirou de novo no colchão de colmo já moído, mas as ordens da mãe pareceram repetir-se mais austeras e foi num salto decidido que abandonou a cama. Abriu as pesadas portadas da janela do quarto estreito e um raio de sol veio beijar-lhe o rosto de menino.
No borralho da lareira, como tesouro aninhado no ventre do negro poial, a mãe deixara-lhe a malga das migas que sorveu com uma sofreguidão de fome e prazer, adiando para o resto um muado de côdea amolecida.


Daí a nada, na escola do Viso, já estava agarrado à pena, atento ao ditado compassado pela professora Adélia. – A Jo-a-na, vírgula, a-ju-dou a mãe, vírgula, bei-jou-a e foi-se deitar. Ponto final, parágrafo.
O Mingos gostava dos ditados mas também das redacções onde podia dar asas à sua imaginação. Eram raros os erros, mas entristecia-se com os colegas do fundo da sala, os repetentes, os “orelhas-de-burro” angustiados no castigo que, tão certo como a festa do Viso ser em Agosto, os esperava após o exercício: uma enérgica reguada por cada deslize na escrita e nem os monossílabos escapavam ao traço inquisitório da esferográfica vermelha da professora.


Frequentava a terceira e era dos poucos a receber o carinho raro com que a professora presenteava os melhores, os menos “sornas”, como ela gostava de mimosear. Logo depois do ditado, e da habitual  e miudinha repreensão por falta de um til ou acento, assistia dilacerado à “aula” de outra aritmética, a das reguadas com a professora a somar “bolos” nas mãos castigadas dos colegas. Ainda o Celestino do Viso, um autêntico mártir, acabara de apanhar a décima sexta, quando se lembrou da tarefa que a mãe lhe marcara.


Na Igreja, a Ti´ Elisa já obrigara o sino a gemer os toques do meio-dia e daí a minutos o Mingos dava com os calcanhares na quadra do cú das calças coçadas, galgando pelo Caminho Novo abaixo ao encontro da mãe. Mas não ía sozinho: No mato do Roto ainda tivera tempo de construir um vira-vento com duas cascas macias de “quelipe”, entrelaçadas com um pequeno furo a meio, um pauzinho de queiró, uns borrões de amora madura, que agora com o vento da corrida girava feliz. Naquela imaginação de menino e com o vento no rosto sentia-se mais leve, como que transportado num aeroplano. O sonho depressa acabou ao fundo da Ribeira-de-Baixo. Daí a nada, o manado de erva que lhe vergava as pequenas costas na subida do caminho, numa humidade fresca de hortelã e giesta, trazia-o de novo à sua realidade, a de menino pobre que no intervalo da escola ajudava a sua mãe.


Amanhã o dia seria igual e depois-de-amanhã e por aí fora. Por isso guardara o vira-vento cor de sangue que haveria de voltar a fazer girar pelo Caminho-Novo abaixo, leve e feliz ao encontro da mãe e do manado de erva fresca com cheiro a hortelã.

 


Américo Almeida

(conto publicado no jornal “O Mês de Guisande”, em Fevereiro de 2006)

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