O Júlio e o Julião

 Olhem, lá vai o Julião, feliz da vida porque a vida lhe tem sorrido.
Duplamente reformado, de lá, do Luxemburgo, e de cá, da função pública, de um cargo que, dizem, porventura as más línguas, chulou até ao tutano, goza agora as delícias da velhice, entretido entre netos, criação de coelhos e cultivo de nabos, nabiças e outras hortaliças na sua horta de estimação.

Nascido e criado na freguesia de Carregães, de origens pobretanas, filho de pai incógnito e da Micas da Estrela, deu à costa na aldeia de Pateiras num dia de festa à Senhora do Amparo, e de um namorico morno, insípido mas fecundo, acabou, qual raposa, a assaltar o galinheiro da abastada e rendida casa dos Figueiras, casando com um dos seus "pitos ricos". Cometeu, porém, a imprudência de se ausentar do galinheiro, ainda morno da segunda galadura, emigrando por uma boa dúzia de anos, pelo que desde cedo tem marrado que baste à custa desta sua "galinha chocadeira", mas isso são outras histórias, outras cornadas.

Apesar desta sua boa posição, com chorudas reformas da estranja e do Estado, o Julião viveu quase sempre ao lado da vida, vivências e convivências da aldeia, fugindo como do diabo da Cruz a tudo o que cheirasse a cargos, canseiras e responsabilidades. Confraria ou comissão de obras ou de festas que lhe batesse à porta, levava a esmola, sempre de tostões, mas não sem ouvir o responso, pai-nosso e sermão. Estava sempre na linha da frente do escárnio e maldizer, do bota-abaixo, sempre no seu ar de pimpão, vestido da mais elevada moralidade. Em suma, era um figurão de Pateiras, mas não passava disso mesmo, um figurão vazio, cheio de nada. Um burro carregado de libras, como o considerava muito do povo da terra.

Não surpreendeu, pois, que um dias destes ao balcão da tasca do Felisberto, já com uns copos de Malaquias a transbordar, o Júlio tenha tomado a voz do grupo, em que por um destes acasos de conversas de café veio à baila a importância do Julião para a terra, para, com a voz já avinhada, sentenciar: - O Julião é mas é um grande filho-da-puta! E corno, ainda por cima! Faz cá tanta falta como uma viola num enterro!

Ficaram todos de boca aberta, mudos e calados, num silêncio de arrebatamento e concordância por tão acertada descrição. O Julião podia ser um figurão, mas o Júlio, esse sim, era um artista que com uma paleta de coloridos palavrões, dissolvidos a vinho verde, pintava qual mestre do mais puro realismo os juliões da aldeia. Para além de verde ou maduro, branco ou tinto, apreciava e comia galinha de capoeiras sem galo, como a do Julião,  ao que dizem, à fartazana, que nem canja  dada a mulher parida.

- A. Almeida

Sem comentários:

Enviar um comentário

O autor optou por moderar os comentários.